Três bocas abertas recepcionam a nossa primeira chegada à Revenguê; são obras que fazem parte da série Arcadas, alguns dos mais de sessenta trabalhos inéditos apresentados por Yhuri Cruz em Revenguê, segunda exposição-cena do artista. Caminhando no espaço expositivo, novas dimensões de Revenguê se revelam: são vozes, sensações e imagens que nos possibilitam compreender outras dimensões e se relacionar com a obra, na totalidade, de outro(s) modo(s).
Contemplação. Totalidade. Vingança. Como chegar à Revenguê? Para além da fisicalidade dos objetos, como se aproximar do projeto estético que torna essa vingança possível? Entre profundos vermelhos, Revenguê existe no mistério, na opacidade e na lentidão da vida plena. Aqui, é Pã Musa Vassauli, habitante do planeta rochoso de Plenér, que nos conduz a Revenguê.
Eis aqui algo para pensar. Revenguê nos oferece algo para pensar. Primeiramente, porque, em sua forma, Cruz opera nos limites entre a cena e a performance ao se afirmar para além desta classificação; incluindo, também, no espaço expográfico obras que conferem camadas de significação ao universo simbólico da dramaturgia. Assim, não se trata de compreender uma “forma ideal” para Revenguê, mas sim permitir-se habitá-lo enquanto projeto de vida — de uma vida que existe e se vinga para além das determinações do mundo que habitamos.
Em termos de estrutura, Revenguê não compreende somente uma cena, mas também o conjunto de trabalhos, vozes e corpos que passam por sua estadia temporária em nosso planeta. Nesse sentido, a composição objetual se relaciona com a ativação cênica desses objetos, por meio do que arrisco chamar de rito: uma inscrição, um movimento, uma “projeção do espaço em uma temporalidade que o espelha” — constituindo um dos pilares de Pretofagia, a recusa do personagem —, construindo uma forma de trabalho que só se torna possível na méthexis.
As obras que constituem Revenguê são trabalhos inéditos produzidos pelo artista para a exposição. Divididos em séries, eles permitem o nosso contato visual com a passagem de Pã para/no planeta Revenguê. Esses trabalhos são registros da boa morte (série Altos Túmulos), são espíritos (série Efeitos da Maré), é a grande boca de Pã (série Arcadas) nos devorando. Levando-nos a uma viagem no tempo, a série Cartazes para Revenguê e as séries de Pã e Pés de Pã nos apresentam as diferentes formas dos planetas Plenér e Revenguê e da viajante, que está em uma ópera intergalática em busca da vida plena.
Enquanto projeto de cena, Revenguê é a sétima cena de Pretofagia. Podemos compreender Pretofagia, projeto de Cruz, de três formas: enquanto projeto de cena, projeto estético e método criativo. Como um ataque ao centro, Pretofagia opera um trabalho coletivo que, nas palavras do artista, trai a linguagem e emancipa movimentos, produzindo um modo de relação com o trabalho que não se limita e reduz às ferramentas coloniais da arte. Pretofagia é, também, uma viagem no tempo; Pretofagia desloca o tempo linear e a nossa própria percepção do (espaço-)tempo.
Com uma duração variável entre 1h e 1h30, as cenas de Revenguê acontecem em quase completo silêncio, com um único momento de fala — onde Pã diz, enfim, seu nome —, são cenas lentas, sem clímax, que ativam muitos sentidos. A presença de um piano em cena, no entanto, produz uma atmosfera de ruptura, um lirismo quase excedente, nas palavras de Fred Moten, pois aqui está Pã: “nessa quebra, nesse corte, nessa ruptura” constitutiva onde reside o espetáculo da “magia preta”. Eis a dádiva de Revenguê.
Revenguê opera um movimento de lentidão que, conforme Tina M. Campt, “é mais que um movimento; é um modo de amplificação. Ela amplifica a sensação e nos sintoniza com as intensidades da micropercepção” (p. 110). Trata-se do silêncio — que não implica na ausência de som — e da lentidão como lugares estéticos, como uma ética do cuidado, construindo assim um planeta onde sentir é ouvir e escolher vingar a vida é motivo de alegria profunda.