NOTA PÚBLICA À EAV
Rio de Janeiro, 20 de janeiro de 2023
À Escola de Artes Visuais do Parque Lage,
Nós, artistas integrantes do Programa Gratuito de Formação e Deformação da EAV, turma de 2022, por meio desta nota, estamos tornando pública uma série de conflitos e silenciamentos institucionais que atravessaram nossa relação com a Escola durante a realização do Programa.
Os Programas de Formação e de Formação e Deformação são anuais, gratuitos e, a cada edição, participam 18 artistas de cada turma (sendo a Formação direcionada a artistas em início de carreira e interessades no geral, e a Formação e Deformação tem como público-alvo artistas com processos desenvolvidos), com bolsa permanência. Em 2022, como ocorre periodicamente, o Programa passou por diversas modificações em função da troca de gestão. As aulas foram realizadas de junho a novembro, com a abertura da exposição em dezembro.
No início do Programa, preenchemos um formulário (ferramenta central na prática da Escola) para solicitar (ou melhor, disputar) a inclusão de temas e discussões no cronograma das aulas, pois já sabíamos o que a mudança de gestão simboliza. Dentre as possibilidades, alguns de nós demos prioridade a temas como historiografia da arte no Brasil, teoria da arte contemporânea e crítica das instituições, cujas ferramentas poderiam nos orientar melhor em relação às nossas proposições artísticas para a exposição final.
No entanto, apesar de termos nossas solicitações parcialmente atendidas (com a inclusão de aulas sobre história da arte com ênfase em artistas negros dos séculos 19 e 20, escultura e outros temas que se relacionavam diretamente com a poética de cada artista), o incômodo maior vem do fato de que muitas abordagens eram profundamente focadas em uma lógica mercadológica que, por muitas vezes, esvazia o trabalho.
Naquele momento, nos parecia que a Escola não estava, de alguma forma, alinhada às problematizações que viemos fazendo no campo da arte há alguns anos. Não somente nós, enquanto grupos de artistas dos programas gratuitos, mas nós enquanto pessoas negras, LGBTs, não binárias etc. Somos artistas e, como bem fez questão de salientar toda a gestão, partimos de diferentes lugares do mundo para produzir nossos discursos. Nossos discursos não podem ser vazios, não podem deixar passar mecanismos de violência que são, em alguns casos, totalmente evitáveis.
Em relação ao quadro docente do Programa, das aproximadamente 24 pessoas que o compuseram, onze eram homens brancos (45%), dez eram mulheres brancas (41%), duas eram mulheres negras (8%) e um era homem negro (4%), sem informações sobre orientação sexual ou identidade de gênero explícitas. A única convidada trans e indígena do Programa teve sua aula cancelada em função dos jogos da copa. Portanto, não tivemos aulas com pessoas trans/travestis, nem indígenas, mesmo havendo na turma diversas pessoas trans/travestis e negras que demandam essas questões em suas práticas artísticas. Esse fato nos faz lembrar que, segundo pesquisa do artista Yhuri Cruz, também ex-aluno do Programa, entre 2014 e 2018, apenas 5% do corpo pedagógico era negro. Seu trabalho “monumento-documento à presença” (2018-2019) evidencia os modos de funcionamento das instituições de ensino de arte, especialmente da EAV, por meio da denúncia das ausências, resultado da lógica colonial que organiza as instituições. Embora o trabalho não tenha tido adesão por parte da gestão da Escola à época, ele nos possibilita encontrar direcionamentos e caminhos para pensar a escola que queremos.
Ao longo desse primeiro período, entre julho e outubro, ficaram mais claras as diferentes tentativas de silenciamento por parte da escola em relação às críticas e posturas de recusa que surgiram no decorrer dos programas. Durante esse momento, tivemos alguns diálogos com a gestão na tentativa de apresentar as demandas e críticas da turma. No entanto, apesar das muitas promessas, não avançamos. A turma contava ainda com a presença de uma monitora, à qual demonstramos solidariedade em face à sobrecarga de trabalho que a afetava.
Um acontecimento que joga luz na falta de comunicação entre a gestão e os servidores terceirizados, de modo que saibam diferenciar turistas de alunos a depender do espaço que habitem, é a expulsão da artista Elis Pinto, também aluna do Programa, das escadas próximas às salas de aulas práticas da Escola, durante a realização de um trabalho fotográfico para a exposição. Após o ocorrido, a artista precisou modificar a proposta expositiva por ter sido interpelada por um segurança do local, de modo a impossibilitar o trabalho.
Em setembro, como resultado de uma ação dos alunos do Programa de Formação, pudemos usufruir do direito de ter um lanche grátis (a ser retirado no Café Lage) nos dias de aula. Novamente, este episódio nos lembra de dois trabalhos de ex-alunos: 1) Em junho de 2015, a artista Lyz Parayzo realizou a fanzine EAV AVE YZO, composta por textos e imagens, ao lado de várias denúncias, dentre elas a elitização do espaço da EAV com a instalação de um bistrô francês. Após o ocorrido, a então secretária de cultura do Estado providenciou, enquanto ação afirmativa para alunos de baixa renda, um cartão vale-alimentação e um vale-transporte; 2) Em 2019, o artista Rafael Amorim, também durante sua passagem pelo Programa, propõe a ação “postal” que evidencia tensões invisíveis entre o espaço turístico e o espaço educacional. Nessa ação, o artista senta-se à margem da piscina, espaço geralmente utilizado para fotos, abre uma marmita e começa a comer. A ação, que causou incômodo aos turistas, traz à cena justamente um dos conflitos institucionais que, mesmo com ações afirmativas e bolsa permanência, não deixa de se fazer presente: a ausência de espaços para consumo barato e alimentação dos artistas nas dependências da Escola. O que nos surpreende, no entanto, é que ainda precisamos demandar condições básicas de acesso e permanência nos ambientes da Escola.
Em novembro de 2022, já estávamos trabalhando nas obras que seriam expostas em dezembro. Durante esse período, solicitamos, diversas vezes, o projeto expográfico (que foi apresentado apenas a alguns alunos, de forma privada), o texto curatorial e outros detalhes técnicos, aos quais não tivemos acesso antes da abertura. Intitulada “Do meu lugar faço movimento”, com curadoria da coordenadora pedagógica do Programa, a exposição abre em meio a uma série de tensões entre a Escola e os artistas. Isso se dá pelo fato de que não pudemos pensar coletivamente aspectos que atravessam profundamente as condições de acontecimento do nosso trabalho. Além disso, não houve uma reunião do educativo com os artistas da exposição para que os artistas apresentassem seus trabalhos à equipe e, assim, permitir as visitas guiadas.
No dia de abertura, 15 de dezembro de 2022, após uma série de tentativas de negociação com a curadora para encontrar um lugar adequado para o seu trabalho, o artista Samuel Pires retirou a sua obra da exposição como uma forma de tornar pública sua recusa em relação ao descaso da gestão (que se recusava a iluminar o local onde sua obra estava). Embora tenha havido tentativa de diálogo por parte da Escola, a proposta de resolução se centrava na possibilidade de voltar a expor, sem demonstrar algum interesse nas motivações do artista. O vídeo-denúncia gravado pelo artista pode ser acessado em seu perfil no Instagram @bok.rua.
Em relação à curadoria da exposição, uma questão que nos incomoda é o elogio à diferença cultural. Enquanto artistas, sabemos que o sistema de arte é atravessado por diversas dinâmicas de poder e dominação. O texto apresentado na exposição, onde a origem social dos artistas é enaltecida, age de forma a desconsiderar, por meio do foco no Rio de Janeiro, a presença de artistas que não são naturais do Estado. Também ignora-se que alguns artistas da turma não mobilizam o “lugar” como tema de seus trabalhos. Durante o Programa, embora soubéssemos do tema, não houve diálogo propositivo em relação ao tema da exposição, de modo que pudéssemos levar questões e críticas. De alguma forma, os trabalhos que não conseguiram escapar das exigências temáticas da curadoria (pois foram propostos antes do início do Programa, no ato de inscrição), foram modificados para que pudessem estar em diálogo com o “território” em jogo.
Nesse sentido, fica evidente o caráter produtivista que atravessa as dinâmicas da Escola de Artes Visuais do Parque Lage, em detrimento de um envolvimento sensível para com os artistas presentes na formação. Esse processo objetivista e individualizante, evidencia o modo como a diferença cultural (raça, classe, gênero etc.) é transformada em mercadoria fungível. O que nos fica evidente também é que, mesmo com as tentativas de resolução, há um problema que informa o próprio modo de funcionamento dessa gestão. Não se trata somente de um desempenho ruim do Programa, mas sim de um efeito dos paradigmas éticos e simbólicos que sustentam a atual gestão da Escola.
Sabemos que o ingresso na mais prestigiada escola de artes visuais do Rio de Janeiro significa muito. Em sua história, o Parque Lage foi e tem sido uma das escolas mais importantes para a arte contemporânea, por onde passaram-se e continuam a passar artistas que são referência para nós e para muitos. Por isso, enquanto artistas, nos sentimos profundamente desrespeitados pela atual gestão da Escola de Artes Visuais do Parque Lage.
Assim, nos perguntamos: O que pode a arte nesse cenário? O que poderíamos ter feito se, em um cenário ideal, nossas demandas fossem plenamente acolhidas pela EAV? Aprendemos, com as gerações de ex-alunos da EAV que mobilizaram e mobilizam diferentes ferramentas para um exercício crítico da arte, que a arte deve refletir politicamente o seu tempo; muitas vezes de forma ambivalente, muitas vezes de forma opaca.
Esta não é a primeira denúncia pública à EAV e nem será a última. Por isso, não escrevemos para demandar, por parte da Escola, alguma conciliação. Esperamos que os relatos fomentem um debate público sobre as condições precárias das instituições e sistemas de arte e, de alguma forma, influencie na criação de políticas educacionais para a permanência de artistas que, muitas vezes por falta de acesso ou recursos, não podem usufruir dos programas gratuitos.
Gostaríamos de dizer, ainda, que a leitura desta carta aberta estava prevista para ocorrer na atividade aberta com o público visitante da exposição, na segunda semana de janeiro de 2023. No entanto, sem nenhuma justificativa, a atividade foi cancelada e não temos nenhuma informação sobre o próximo passo do Programa, que envolve a publicação de um catálogo.
Por fim, colocamo-nos à disposição para diálogos propositivos em prol de um ensino de arte crítico que nos permita saber habitar os espaços do sistema de arte.
Assinam esta carta,
Andy Villela
BÉATRICE
Elis Pinto
Fava da Silva
JARDES
Joelington Rios
Ju Morais
Lohana Montelo
Lucas Ururah
Mariana Freitas
Samuel Pires
Siwaju Lima
Thadeu Dias
viníciux da silva