Exposição coletiva, Largo das Artes, 2025
Curadoria e texto: Rubens Takamine e viníciux da silva
“Estou em guerra contra mim mesmo”, expressou Jacques Derrida — filósofo que insistiu na afirmação da vida, na escolha pela sobrevivência. As palavras ecoam em sua última entrevista, concedida um mês antes de sua morte, em 2004.
Torção. Paradoxo.
É nesse espírito que esta mostra se apresenta, reunindo obras-vestígios que exploram as contradições da psique humana: os limites da razão, a (de)formação da linguagem, os vícios e armadilhas da mente, suas clausuras — mas também os lampejos de desapego do ego, os gestos de libertação do eu-indivíduo.
Como dançar no escuro?
Como perfilar-se diante do vazio?
Trincheiras da Alma é metáfora e convite: evoca os conflitos internos — às vezes silenciosos — que enfrentamos ao longo da vida. Sugere uma negociação íntima com a própria sombra, com os subterrâneos onde habita nosso “eu” mais obscuro. Uma travessia por camadas profundas da existência que não se revelam nos dias claros, mas nos faz enxergar nessa íntima obscuridade a possibilidades de aprendizado com a solidão e a resiliência.
Nada é mais paradoxal que uma trincheira:
Uma cova que protege. Abrigo que aprisiona.
Nosso corpo adoecido é trincheira. Nosso ego, armadilha.
Às vezes, é preciso dizer adeus à linguagem, voltar ao ponto zero.
Abdicar do controle, das hierarquias e privilégios.
Largar o osso.
Ter paz ou razão?
A clausura como denúncia
Três mulheres e um fardo. Letícia Parente se infiltra no interior de um guarda-roupa e pendura-se em um cabide. Liane Roditi adormece no armário da cozinha, entre as louças. Taty Arruda está congelada dentro um freezer, mas, lentamente, o processo de degelo se inicia. Através da autorrepresentação (no vídeo, na fotografia e na pintura, respectivamente), as artistas escancaram o caráter repressivo das responsabilidades sociais e afetivas atribuídas às mulheres em espaços domésticos: mãe, esposa, filha, do lar. A delicadeza das louças. A objetualidade das roupas. O alimento perecível, por vezes, esquecido no fundo da geladeira. Habitando o silêncio com fúria contida, performam a clausura como denúncia e reinventam seus corpos como território de resistência. O peso de ser e tornar-se mulher. Quando o gelo findar, que tipo de liberdade emergirá?
O silêncio
Breno de Sant’ana e Lui Trindade inspiram revoluções silenciosas. Cara-a-cara. Uma escultura mira a outra. Poderia haver, ali, um desejo: uma tensão erótica entre um soldado onipresente — câmera sob pedregulhos — e um forasteiro enigmático, moldado em látex, gesso e cabelo. O panóptico de Jeremy Bentham se atualiza em tecnologias cada vez mais sofisticadas, câmeras AI, microchips e algoritmos. Quando as luzes da vigília se apagam, pasmem - os opostos se beijam loucamente! O soldado se apaixona pelo forasteiro. Guerra híbrida ou pura paranoia? O alvo é o silêncio. E se o silêncio também é resposta, a recusa é a afronta mais feroz. Para sobreviver nas trincheiras de uma guerra, às vezes é preciso fingir-se de morto.
A pequena morte
La petite mort, ou a pequena morte, é um termo de origem francesa que designa a sensação de desligamento após um orgasmo sexual. Um estado de relaxamento intenso, uma desconexão momentânea com o mundo. O alívio temporário da razão. Ah! O êxtase contido no vídeo de Livia Tata'pora brota de um frenesi de estímulos carnais. O êxtase contido na coreografia de Juliana Wähner emerge da diluição de todos os egos. Des-racionalizar o mundo talvez seja a estratégia mais antiga e eficaz para reposicionar a ordem das coisas. No entanto, é uma faca de dois gumes: a antítese da existência, o fim que impulsiona novos começos.
O espelho da alma
Ao dançar no escuro, avisto as plumas de um cisne negro. Delírio, prazer e sedução. Há uma sinergia entre a escultura de Bruno Magliari (gesso, cerâmica e resina) e a escultura de Zé Carlos Garcia (penas escuras, lona e espuma). N’outra noite sonhei com Odete e Odile, personagens principais do balé dramático O lago dos cisnes, de Tchaikovsky. A dualidade rege as batalhas entre o bem e o mal, as luzes e as sombras, o esplendor e o fracasso. E se aceitarmos a penumbra? O convívio entre luz e sombra, simultaneamente. Isso não significa o apaziguamento dos espectros da diferença, mas sim, o surgimento de uma coreografia que se atente à complementaridade entre as diferenças, permitindo o fluxo da vida. Sem silêncio, não há música. Sem pausa, não há ritmo. Sem antagonismo, não há protagonismo. Quanto maior a incidência de luz sobre algo ou alguém, maior a sombra projetada.
A abstração
Quando o excesso de luzes (da razão instrumental) tenta elucidar o mistério da alma, a abstração nos é refúgio. As obras de Camile Soares, Gabriel D’Ketu e varone desvelam a interioridade das emoções, utilizando a diluição da forma como método para a expressão de suas respectivas espiritualidades, memórias, sonhos, devaneios, epifanias. Há um anseio pela fugitividade: a inadequação às formas geométricas ou reconhecíveis. O silêncio da noite. O submundo. A faísca. Se a figuração tange àquilo que há de visível, possível ou existente em nosso imaginário, a abstração lírica mergulha num oceano profundo de incertezas, e se coloca diante das zonas mais abissais do sentir.
Coreo(grafias) da salvação
"A poesia, a música, uma pintura, não salvam o mundo, mas salvam o minuto. E é o suficiente. A gente está aqui para dançar um pouco sobre os escombros”, afirmou a poeta portuguesa Matilde Campilho em entrevista. Crystal Duarte, Manoela Monteiro e Anna Maria Maiolino utilizam a palavra e a imagem enquanto interstícios psíquicos entre o “eu” e o mundo. A poesia salva o minuto e isso basta. Um passo de cada vez. A tensão aumenta ou diminui conforme os passos dessa envolvente dança. Há tanta química envolvida, que arrisco a dizer: a arte é a droga mais viciante que existe! Lança-se um feitiço/fetiche no mundo que se volta contra o feiticeiro, caímos na prazerosa armadilha. A criatividade impulsiona a vida, assim como a dopamina, a adrenalina, a morfina, o DMT ou os depressores benzodiazepínicos agem sobre um corpo. A poesia me salvou hoje - e isso foi suficiente.
A batida interminável da alma
Esse é o lugar onde o amor se manifesta e os deuses se unem. Aqui, Fujioka 藤永, Kaetérine Terra, Melgga e Frekwéncia se encontram na busca de uma possibilidade que permanece nos guiando. Buscamos um coração que não pare de amar, o vislumbre de algo belo mesmo em meio ao luto e à morte. Afinal, a vida é sonho — e já não temos tempo para sonhar os sonhos do colonizador. A obra de Fujioka 藤永 guarda um segredo de existências milenares, onde nada pode ser contido ou encerrado. O segredo vai nos proteger — e nossos sonhos também. Kaetérine Terra nos mostra isso com sua política onírica, que insiste em assombrar o mundo com beleza, como se dissesse que imaginar ainda é uma forma de insurgência. Essa beleza também pulsa na performance de Frekwéncia e Melgga — que nos oferecem, entre corpos, farinhas e mel, um gesto de alegria. Mas também de pausa. Porque, como nos ensina Tina M. Campt, a quietude é uma frequência da vida negra, uma ética do cuidado. Assentamento não é repouso: é resistência estratégica. Tudo aqui é um chamado ao equilíbrio — entre firmeza e suavidade, presença e silêncio, gesto e escuta. Essa é uma rebelião silenciosa, em direção a uma vida que insiste em continuar. Tudo tem alma. Uma batida interminável. Ela está aqui agora. E depois também. Enrolada em si mesma, para sempre.
Rubens Takamine & viníciux da silva
Rio de Janeiro, abril de 2025