Não é por acaso que a metamorfose da lagarta e da ninfa em borboleta é chamada de imago. Assim se passa da borboleta e com a imago psíquica no sentido de Lacan (ou de Merleau-Ponty, aliás): ela bate – ela bate as asas. É uma questão de aparição visual e de experiência corporal ao mesmo tempo. (DIDI-HUBERMAN, 2009, p. 1)
Portanto, embora não saibamos como cuidar com antecedência ou de uma vez por todas, aspirar especulativamente por eticidades situadas é vital porque não é concebível nenhum “tão bem quanto possível” na Terra sem essas agências, mesmo aquelas que não se pretendem como éticas. Situações de cuidado implicam em obrigações não-simétricas, multilaterais, asubjetivas, que são distribuídas por existências e materialidades mais que humanas. (PUIG DE LA BELLACASA, 2017, p. 221)
Sou com o todo, não mais eu mesma só, mas eu e os outros seres. Sem a aura de ser autora d’alguma coisa, pois de que vale a primazia de ter uma aposta genial, se os demais não se deixam escutar o mesmo sussurro das árvores? Estou nessa missão de sobreviver ao fim do mundo e conspiro coletivamente estratégias capazes de delinear a liberdade. (MONTELO, 2022, s/p)
Como construir, para si, uma imagem em relação ao mundo? Uma imagem que, em alguma instância, dê a ver a implicada habitação que não pode (mais) ser pensada através da separabilidade cartesiana? A palavra imago descreve, no mínimo, dois movimentos: 1) para a entomologia, imago é a fase adulta ou estágio reprodutor de um inseto; e 2) etimologicamente, imago, do latim, dá origem às palavras “imagem” e “representação”.
Imago é também uma palavra que informa um certo movimento de produção de sentido. Se, conforme narra Didi-Huberman a partir da psicanálise (Lacan) e da fenomenologia (Merleau-Ponty), a imagem é (ou pode ser) “uma questão de aparição visual e experiência corporal ao mesmo tempo”, é justamente devido aos processos de significação que figuram (n)o espetáculo do mundo.
Imagens são formas pensantes, pois mobilizam estruturas de pensamento e sistemas representacionais que, em alguma instância, possibilitam a construção de uma imagem (de si) em relação ao mundo. Engajar nesse movimento expressa a imagem como significado e não necessariamente como aparição visual. No entanto, como pensar a imagem em meio à catástrofe - ou à sua revelia - a partir de uma relação entre cuidado e violência?
A produção recente da artista Lohana Montelo mobiliza questões que me fazem pensar na possibilidade de construção dessa imagem a partir de paisagens multiespécies. Em “Drosophila melanogaster” (2022), Montelo cria um cenário relativamente simples: uma cama (construída com resíduos orgânicos). Ao longo do vídeo, as moscas da espécie Drosophila melanogaster se aproximam da cama e se relacionam com ela, de alguma forma. Nesse sentido, Montelo cria as condições para que uma cooperação interespecífica ocorra de modo a tornar visível o que move o trabalho que, nas próprias palavras da artista, é um trabalho sempre-já vivo, sempre-já simbiótico.
Em Staying with the Trouble: Making kin in the Cthulhucene (2016), Donna Haraway emprega o termo sympoiesis para pensar as relações tentaculares entre as espécies. “Sympoiesis” significa “fazer-com”, “é uma palavra adequada para [descrever] sistemas históricos complexos, dinâmicos, responsivos e situados. É uma palavra para [fazer um mundo com], em companhia” (p. 59). A partir dessa ideia, Haraway nos convida a pensar de forma também tentacular sobre os monstros do antropoceno em direção a um futuro seguramente orgânico.
Pensar em um futuro orgânico implica no reconhecimento de que “humanidade e não-humanidade sempre performaram uma implicada dança uma com a outra” (BENNETT, 2010, p. 31), de modo que nós, enquanto “humanos”, apenas agimos em concerto com outras forças e coisas do/no mundo. Embora essa noção tenha sido negada na consolidação do projeto moderno-colonial, ela é importante para especular sobre modos de habitar o mundo outramente. Em Vibrant Matter (2010), Jane Bennett se engaja na busca pela vitalidade das coisas, na tentativa de desenvolver uma “teoria da agência distributiva” (p. 21).
A agência distributiva de Bennett nos conduz à sympoiesis de Haraway. Ao mobilizar a imagem de uma queda de energia que afetou mais de 50 milhões de pessoas nos Estados Unidos e Canadá, Bennett (p. 24) nos fornece uma descrição do que significa fazer-com:
A rede de energia elétrica oferece um bom exemplo de uma assemblagem. É um agrupamento material de peças com carga que realmente se filiaram, permanecendo em proximidade e articulação suficientes para produzir efeitos distintos. Os elementos da assemblagem trabalham em conjunto, embora sua coordenação não suba ao nível de um organismo.
A assemblagem é sempre uma configuração temporária, provisória, que cumpre uma função pontual. No entanto, ela também mobiliza estruturas complexas de pensamento e evidencia a sympoiesis, como é o caso de “Drosophila melanogaster”.
Nesse sentido, penso que a produção de Montelo mobiliza o que Bennett chama de “corpos conativos em assemblagem” (conative bodies in assemblage). Em trabalhos como “Agroflorestar Solos de Pedra” (2020-) e o já mencionado “Drosophila melanogaster” (2022), Montelo torna (ainda mais) evidente as dinâmicas da ética especulativa que informam o seu trabalho. Enquanto artista e agrofloresteira, Montelo trabalha-com a matéria para construir esculturas vivas (como nomeia alguns de seus trabalhos) e pensar nas possibilidades de geração de vida em espaços inóspitos.
Partindo desse pensamento, a série “Agroflorestar solos de pedra” (2020-) traz fotografias de uma mesma assemblagem em momentos distintos. Em 2020, a artista iniciou o plantio de um canteiro agroecológico nas dimensões do seu próprio corpo, na Cidade Universitária, no Rio de Janeiro. As fotografias registram cinco momentos distintos do canteiro, datados entre setembro de 2020 e fevereiro de 2021. A forma do corpo de Montelo desaparece na medida em que a assemblagem recria sua forma a partir da ação da artista.
Plantar um canteiro nas dimensões do próprio corpo seria uma forma de estabelecer um pacto interespecífico para o reconhecimento de que as “materialidades não-humanas” também participam da ecologia política das coisas, como sugere Bennett? Se a aproximação da matéria em estado bruto implica em riscos inevitáveis, há pelo menos um do qual devemos, também, nos aproximar: o risco de radicalmente perceber a agência distributiva nos/dos mundos emaranhados e de descentralizar a agência humana-antropocêntrica.
Há aí uma relação de cuidado, pois Montelo mobiliza as condições para a realização de uma assemblagem necessariamente efêmera. “O cuidado é um problema humano, mas isto não faz do cuidado uma questão apenas humana”, sugere María Puig de la Bellacasa, “afirmar o absurdo de desenredar as relações humanas e não-humanas de cuidado e as éticas envolvidas requer agências humanas descentralizadas, bem como manter-se próximo das dificuldades e heranças de feitos humanos situados” (2017, p. 2).
A princípio, pode-se pensar que trabalhos que envolvem organismos vivos são trabalhos cruéis ou antropocêntricos, pois não levam em consideração a capacidade de afetação de outras espécies. No entanto, como busco argumentar com seus trabalhos, Montelo mobiliza assemblages para corpos conativos. Em outras palavras, isso significa dizer que Montelo pensa-com, vive-com e trabalha-com as espécies que visitam o seu trabalho, pois é nesse movimento imprevisível da dança interespecífica que o trabalho, de fato, acontece. E se acontece, acontece somente enquanto momento de vida.
Pensar o cuidado a partir de uma ética especulativa, como nos anima Bellacasa, significa assumir o risco de habitar esse emaranhado das relações interespecíficas, na tentativa de compreender de forma (ainda mais) implicada as possibilidades de habitar o mundo outramente. Estou falando, aqui, do cuidado enquanto ética (especulativa) (PUIG DE LA BELLACASA, 2017). Nesse sentido, esse cuidado pode ser, também, uma recusa, pois não sendo absolutamente positivo nem negativo (afinal, não se trata de articular um pensamento binário), ele possibilita criar novas condições a partir das quais (novas) utopias para mundo mais que humanos se tornam possíveis.*
Esses trabalhos não existem enquanto objetos convencionais, nem podem ser preservados. Então, o que há de tão valioso nos momentos perecíveis que Montelo cria para nos fazer crer que as moscas e as árvores de seu canteiro estão muito mais próximas de nós do que pensamos? Isso serve para delinear a liberdade, diria a artista, afinal, a liberdade é algo que se fabrica.
No entanto, a questão continua a ecoar. Como construir, para si, uma imagem em relação ao mundo? A mera compreensão da agência das coisas, do emaranhado multiespécies, do mundo implicado, não basta. Precisamos lidar com a ideia de que “o reconhecimento da agência dos artefatos [e das espécies não-humanas] não precisa [preceder] a negação da nossa própria [agência]” (SUCHMAN, 2007, p. 285). É preciso afirmar uma prática artística que possibilite ultrapassar as barreiras da materialidade (ou do pensamento excessivamente materialista). Não se trata somente de assumir a coexistência, mas sim de engajar um fazer-com, de “ser múltiplo ou não ser nada!” (PUIG DE LA BELLACASA, 2017, p. 71).
Se, como argumenta Haraway (2016), estamos, contínua e inevitavelmente, nos tornando-com (becoming-with), é porque “o mundo é constituído por intra- e inter-ações” (p. 13). Partindo dessa compreensão, para seguir com o problema, provoco quem lê a pensar em desposicionamentos e outras coreografias de ação que centralizam a sympoiesis enquanto modo de habitar/relacionar-se com o mundo.
Nesse sentido, o trabalho de Montelo nos anima a pensar/agir-com outras espécies. Para a realização de “Agroflorestar solos de pedra”, por exemplo, a artista precisou compreender o modo como a matéria atua. Foi preciso estudar a composição do solo, bem como suas características geomorfológicas e físico-químicas, para se relacionar com ele, para construir sua imagem em relação a ele. E isso nos leva de volta ao materialismo vital de Bennett (2010, p. vii): experienciamos “um mundo populado por coisas animadas ao invés de objetos passivos.” É isto que a aproximação em estado bruto da matéria demanda: compreensão de sua ação para que possamos agir-com ela, sem a centralidade da agência humana.
Estou interessada nas camadas deste trabalho que me fazem pensar sobre o cuidado como uma forma de relação com o mundo. À luz de Didi-Huberman (2009) e Puig de la Bellacasa (2017), penso em “Agroflorestar solos de pedra” como um imago: uma aparição visual e uma experiência corpórea, ao mesmo tempo. Apesar da dissipação da forma do corpo da artista, que desapareceu com a passagem do tempo, o trabalho existe enquanto experiência, relato. Em outras palavras, “Agroflorestar solos de pedra” existe enquanto exercício de uma ética especulativa que busca vislumbrar novas socializações interespecíficas. Uma imagem de si não apenas em relação ao mundo, mas no mundo, radicalmente presente e geradora de novas possibilidades de vida.
Em “Drosophila melanogaster” há, ainda, um elogio à sujeira, aos ambientes impuros, em contraposição à pretensa esterilidade do espaço expositivo, frequentemente criticada por Montelo em seus trabalhos. Quando sabemos que existe a possibilidade de as moscas chegarem à obra devido à presença de resíduo orgânico, o trabalho pode parecer não esconder nenhuma surpresa. No entanto, ao criar uma situação de aproximação entre humanos (espectadores) e não-humanos (participantes) nessa instalação, a artista dá forma a uma nova questão: quais os níveis de identificação entre o espectador e as moscas presentes no trabalho?
A D. melanogaster é uma espécie que possui muitas similaridades com os humanos, sendo amplamente usada como espécie modelo em pesquisas genéticas. Isso se dá porque o genoma da D. melanogaster possui 60% de similaridade com o genoma humano, como nos mostra um estudo realizado pelo National Human Genome Research Institute. Embora não sejam ofensivas ou perigosas, as moscas ainda causam desconforto. Com este texto, não tenho a intenção de aprofundar um debate sobre a ética das relações interespécies; no entanto, como salienta Puig de la Bellacasa, essas relações, confortáveis ou não, ainda são relações de cuidado.
O que o trabalho “Drosophila melanogaster” nos coloca é ainda mais complexo: ele demanda o reconhecimento da importância de outras espécies em determinados (e talvez em todos os) espaços. A D. melanogaster é, também, conhecida como mosca-das-frutas - ela está sempre presente em ambientes com comida. A sua presença nos indica algo. E isso só poderá ser plenamente reconhecido quando compreendermos a semelhança que justifica o seu uso em estudos científicos. No entanto, isso não se aplica somente às moscas. Estou demandando, a partir do trabalho de Montelo, uma relação que permita que nossa imagem em relação ao mundo seja, de fato, visível no mundo, em sua multiplicidade específica e abundância de vida (com moscas, árvores e todas as espécies companheiras, como nos sugere Haraway).
Para habitá-lo outramente, reconhecer a atuação interespecífica no mundo em que vivemos não é somente tomar consciência do fato. Como bem argumentam Gilles Deleuze e Félix Guattari, “Não basta gritar ‘Viva o múltiplo!’, o múltiplo precisa ser feito” (apud PUIG DE LA BELLACASA, 2017, p. 72). Trata-se de um exercício ético e especulativo, na tentativa de experienciar as coisas enquanto coisas e não enquanto objetos, compreendendo que pensar socializações interespécies pode ser muito mais difícil do que pensamos, pois as perguntas são sempre mais importantes do que as respostas. Então, eis aqui a minha pergunta primeira: como construir, para si, uma imagem em relação ao mundo?
*Neste ensaio, reforço o (des)posicionamento de Puig de la Bellacasa (2017): o cuidado é sempre uma relação e, enquanto relação, é possível mobilizar imagens de cuidado enquanto violência e desconexão. O foco da análise de Puig de la Bellacasa é o descentramento da agência humana nas relações de cuidado. Levando em consideração que vivemos em mundos mais que humanos, “as agências em jogo se multiplicam” (p. 122). Sendo o cuidado “não somente ontologicamente, mas também politicamente ambivalente” (p. 7), estou interessada em compreender as dimensões desse cuidado, com o trabalho de Montelo, que nos levam a pensar em possibilidades de/para habitar o mundo outramente.
Referências
BENNETT, Jane. Vibrant Matter: A Political Ecology of Things. Durham & Londres: Duke University Press, 2010.
DIDI-HUBERMAN, Georges. “Imaginer, disloquer, reconstruire”. Histoire de l’art et anthropologie [Internet]. Paris: INHA, Musée du quai Branly, 2009. Disponível em: <https://journals.openedition.org/actesbranly/193>.
HARAWAY, Donna. Staying with the Trouble: Making Kin in the Chthulucene. Durham & Londres: Duke University Press, 2016.
MONTELO, Lohana. Site da artista. Disponível em: <https://lohana.hotglue.me/>. Acesso em 06 dez. 2022.
PUIG DE LA BELLACASA, María. Matters of Care: Speculative Ethics in More Than Human Worlds. Minnesota: Minnesota University Press, 2017.
SUCHMAN, Lucy. Human-Machine Reconfigurations: Plans and Situated Actions. 2ª ed. Cambridge: Cambridge University Press, 2007.
Foto: Brenda Cantanhede (2023). Site da artista.
Lohana Montelo, 1997, é artista-pesquisadora e mora em Brás de Pina, Rio de Janeiro. Procura fazer com que seu mundo não chegue ao fim e viver com dignidade. Trabalha com arte para retomar uma relação mais fértil com a Terra. Se interessa em construir agroflorestas, nas questões agrárias brasileiras, em plantar bananeira e colecionar sementes. Faz magia através de feitiços orgásticos, manipula energias, acredita na impermanência da matéria. Graduada em Artes Visuais - Escultura pela UFRJ, integra a Rede de Agroecologia da UFRJ.
e-mail: lohmontelo@gmail.com
@lohanamontelo